domingo, 21 de setembro de 2008

Genealogia de um individualista



Percebe-se já na maternidade o bebê que tem no DNA as características de um individualista. Enquanto ele mama num bico, tapa com a mão o outro, para nenhum intruso cair em tentação. Seu choro é dos mais altos do bairro, já que ele exagera, para ocultar outros bebês que possam estar clamando atenção.Suas primeiras palavras não são ''''ma-mã'''' nem ''''pa-pá'''', mas ''''be-bê'''', ''''eu que-lo'''', ''''mim gosta''''.


Só depois, ele nota que existem outros seres ao redor e interage falando ''''meu ma-mã'''', ''''pa-pá do be-bê''''.A bicicletinha do garoto individualista não vem com garupa, pois é só dele. A sua primeira mesa de botão vem só com um lado do campo, pois só ele pode jogar. A sua primeira mesa de pingue-pongue se chama na verdade mesa de pingue, pois ninguém dará o pongue. Seus esportes são correr, bicicleta e esteira. Para não passar uma bola para outrem.


Nas férias escolares, o ser individualista queima todos os seus livros didáticos do ano letivo que passou, para que ninguém possa usá-los. Ele fará faculdade de Direito. Pretende seguir a carreira de juiz, pois quer mandar mais do que todos e julgar a humanidade. Se não conseguir passar nos exames, abrirá uma igreja.


O individualista é um indivíduo que renasce com força nos momentos econômicos favoráveis. Pois, ciente da oportunidade rara, ele aproveita os bons ventos para faturar e consumir, ignorando ideais humanistas, sentimentos altruístas, dispensáveis e piegas, vocações de tempos de crise, quando muitos se unem para combater o caos e as ameaças de desintegração da própria espécie, inclusive a dos individualistas.


Ele é obcecado por limpeza. Aplaude quando favelas são removidas e moradores de rua são retirados de praças e calçadas. Aplaude recapeamento de ruas e avenidas. Acredita que o melhor para o Brasil é a malha rodoviária, e não a ferroviária, já que o seu lema é ''''cada um que trace o seu próprio caminho e cuide do seu nariz''''.


O individualista não usa transporte coletivo. Não faz greves nem manifestações. Participou apenas de uma passeata na Avenida Paulista, a do Movimento Basta de Impostos, preocupado com os tentáculos que o governo lança sobre o lucro da iniciativa privada.O individualista odeia impostos. Todos eles. Acredita que não adianta pagá-los, pois a máquina burocrática pública come todo o dinheiro, sem contar as máfias organizadas em bolsões de corrupção e partidos políticos. Para o individualista, a CPMF só servia para cobrir as despesas da TV Lula, dos cartões de crédito do Planalto, dos programas sociais que não ensinam a pescar.


O individualista comemorou o fim do imposto provisório. Porque o dinheiro estará injetado na economia, e não na mão de um Estado ineficiente.Atualmente, o individualista defende a privatização de todos os setores, até da saúde. Ele não fuma, não come queijos gordos nem frutos do mar, bebe com moderação, faz exames periódicos na próstata e no cólon, por que deveria se preocupar (e pagar) por quem não cuida da própria saúde? Cada um com os seus problemas.


Defende que cada indivíduo pague pela sua segurança (carros blindados, condomínios fechados) e pela saúde da família (previdência privada e planos de saúde), a entregar o montante ao funcionalismo público incompetente, preguiçoso, fantasma.Aceita pagar pedágio, para não estragar a suspensão, amortecedores e molas do seu carro blindado, que troca a cada dois anos.O individualista não tem preconceitos. Mas nunca irá à Parada Gay, nem recomenda a nenhum dos seus filhos.


O individualista matricula-os em escolas estrangeiras, pois os mesmos não merecem uma educação inferior, falada em português, idioma infeliz, de pouca repercussão nos negócios e na cultura, e devem, com certeza, exilar-se deste País sem futuro e fazer MBA ou pós fora daqui.


O individualista acha que o Brasil deveria dar um troco na Bolívia, depois que o país vizinho nacionalizou as ''''nossas'''' refinarias. Invadir e botar aqueles índios para tocar flauta nos Andes. Aproveita e expulsa aqueles que tocam no Glicério, defende. Ele é contra imigrantes. Contra o Mercosul. O Brasil deveria fazer como o Chile e se unir em bloco a quem interessa, os Estados Unidos. E, sim, mandar Chávez se calar, mas desta vez em português claro: ''''Por que não cala a sua boca, mala!''''


O individualista vai ao teatro para assistir a musicais da Broadway; isso, sim, espetáculo que entretém, com tecnologia e sofisticação, e não aquelas peças de hippies depravados, que ainda por cima usam dinheiro de incentivo fiscal para roubar e, com notas frias, comprar carros e casas à custa do erário.


O individualista não vê muitos filmes brasileiros, que considera amadores, sem efeitos especiais e com pouca ação. Mas adorou Tropa de Elite, que viu numa cópia pirateada por ele mesmo, num download de um torrent.


O individualista, apesar de individualista, adota tecnologia de ponta no seu dia-a-dia, um paradoxo - ele não é retrô, mas bem antenado.


O individualista já tem o conversor de alta definição na tevê plasma. A sua sala é um verdadeiro parque de exposição do que há de mais avançado em tecnologia de som e imagem. Porque o individualista prefere que sua família não dê mole em ruas e esquinas de uma cidade que perdeu o controle da violência urbana.

O individualista mora em condomínio fechado. Entregadores de pizza não entram nem a pau! Nem de chinês, japonês ou muito menos árabe. Nem motoboys. Nem o Correio entra. Os empregados domésticos têm crachás. Os visitantes são obrigados a posar para fotografias em cadastros digitais. Cada residência está conectada ao circuito fechado de tevê. Plasma.Cada vez que há uma visita, o individualista corre para conferir em sua tevê se a visita é quem afirma ser.

É tão rigoroso com o zelo do seu patrimônio, que não autorizou a entrada da esposa, quando ela fez chapinha, confundindo-a com uma falsa doméstica que atacava de peruca pela redondeza.


O individualista morre de uma doença rara; não vai morrer de algo que qualquer um pega. E no seu velório aparece apenas um sujeito, que olha o caixão, as flores e a única faixa. É outro individualista, que diz: ''''Menos um.''''

AUTORIA: Marcelo Rubens Paiva

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